Champagne e as mudanças climáticas: como o clima está moldando o futuro das borbulhas?

Champagne e as mudanças climáticas: como o clima está moldando o futuro das borbulhas?

Champagne é uma região situada no nordeste da França, considerada marginal para o cultivo de uvas viníferas. Sua localização, em uma latitude entre 49°N (Épernay) e 49.5°N (Reims), é considerada o limite para a prática da viticultura. O clima, continental com influência marítima, tem médias anuais de temperatura em torno dos 11°C. A região é conhecida por seus invernos longos e rigorosos, verões relativamente curtos e com boa incidência de chuva durante o ano. A soma desses fatores sempre tornou o cultivo de videiras na região em um verdadeiro desafio.

Vinhedo em Verzenay, Champagne. (foto: Maria Paula Almeida

O clima continental frio é, em geral, positivo para a produção de uvas destinadas a espumantes de alta qualidade, uma vez que possibilita um amadurecimento mais lento (e acúmulo de açúcar também mais lento) e mantém altos níveis de acidez. No entanto, esse clima também traz desafios para a viticultura, como temperaturas muito baixas, constantes geadas, granizo e chuvas (devido à influência marítima), resultando em grande variação entre safras.

AS MUDANÇAS NO VINHEDO

Todavia, o aquecimento global trouxe mudanças significativas para Champagne. Nos últimos 30 anos, as temperaturas médias na região aumentaram cerca de 1.2°C, segundo o CIVC (Comité Champagne). Os verões estão mais quentes e os invernos mais amenos. Como consequência, o ritmo da viticultura mudou. Houve, por exemplo, um adiantamento no ciclo vegetativo – as videiras brotam mais cedo, florescem mais rápido e a colheita tem ocorrido cerca de 18 dias antes, em média, do que há 30 anos. Além disso, algumas práticas durante a vinificação também estão sendo adaptadas, como veremos mais adiante.

Curiosamente, o aumento das temperaturas tem, até o momento, beneficiado a produção em Champagne. Graças a ele, hoje é possível alcançar uma maturação mais uniforme das uvas bem com uma qualidade mais estável. Começando no vinhedo, as uvas têm amadurecido de maneira mais consistente, com um maior equilíbrio entre açúcar e acidez. Além disso, há menor oscilação entre safras boas e ruins, algo que era bastante comum, tornando mais fácil a produção de espumantes de qualidade, ano após ano.

AS MUDANÇAS NO PROCESSO DE VINIFICAÇÃO

Essas mudanças no vinhedo, por sua vez, vão impactar em outras fases do processo, como por exemplo, na conversão Malolática. Tradicionalmente, era regra os vinhos passarem pela Malolática, para diminuir a acidez extremamente alta. Hoje, essa fase é opcional; alguns produtores fazem a Malolática por completo (ex: Moët et Chandon), outros parcialmente (Lanson) e alguns, a evitam completamente (Gosset). Uma outra consequência, é que ao final do processo de produção, há hoje uma menor adição de açúcar (dosage) no licor de tirage, já que os vinhos são naturalmente mais equilibrados. Com isso, a produção de estilos mais secos, como o Brut Nature (0-3g/L de açúcar residual) e o Extra Brut (de 0 a 6g/L de açúcar residual), cada vez mais populares entre consumidores, se tornou mais comum.

Jean-Baptiste Lécaillon, chef de cave da Maison Louis Roederer, vê as mudanças climáticas como uma oportunidade. Ele afirma que a maior consistência no amadurecimento das uvas, proporcionada pelo aquecimento global, tem permitido obter vinhos mais equilibrados e com uma acidez natural mais bem preservada. “As safras dos últimos anos têm sido uma benção para nós”, diz Lécaillon.

Outro chef de Cave, que também enxerga o impacto das mudanças climáticas de forma otimista, é Hervé Dantan, da Maison Lanson. Ele aponta que o aumento das temperaturas tem permitido uma melhor maturação das uvas sem sacrificar a acidez característica que define o estilo da Maison. “Estamos colhendo uvas com mais maturidade, mas graças à nossa prática de vinificação sem fermentação Malolática, conseguimos preservar a acidez vibrante, mesmo em safras mais quentes”, explica. Isso tem permitido à Lanson manter seu estilo fresco, enquanto explora novos horizontes para a complexidade aromática de seus vinhos.

A Maison Ruinart vai além. Recentemente lançou seu Blanc Singulier, um cuvée limitado que reflete diretamente o impacto das mudanças climáticas na viticultura local. Para Frédéric Panaïotis, chef de cave da Ruinart, o aumento das temperaturas proporcionou uvas mais maduras e cheias de expressão. O Blanc Singulier capta as nuances climáticas de um ano específico e destaca a abordagem mais natural da Maison, com menos dosagem e maior foco na pureza das uvas. Segundo Panaïotis, “o desafio é preservar a identidade de Champagne em meio a essas mudanças, enquanto abraçamos as novas possibilidades que o clima nos oferece. E continua: “este cuvée incorpora a capacidade da Ruinart de adaptar seu know-how a um ambiente natural impactado pelas mudanças climáticas”.

Ruinart Blanc Singulier. Novo cuvée da Maison Ruinart, que abraça as mudanças climáticas em Champagne.

No entanto, essas vantagens podem ser passageiras, já que as mudanças climáticas tendem a continuar e os limites para o equilíbrio perfeito entre acidez e açúcar podem ser ultrapassados.

ALGUMAS ADAPTAÇÕES SÃO NECESSÁRIAS…

Conscientes da necessidade de adaptação, as Maisons de Champagne vêm implementando práticas mais sustentáveis para tentar mitigar os efeitos das mudanças climáticas. A Maison Bollinger, adotou técnicas de viticultura sustentável, investindo em biodiversidade e redução de pesticidas. Já Louis Roederer, se destaca pela conversão de seus vinhedos para a agricultura biodinâmica. Hoje, a Maison possui a maior área de vinhedos biodinâmicos em Champagne, com 109 hectares. Sua filosofia é de que vinhas mais saudáveis e resilientes têm maiores chances de enfrentar as condições climáticas extremas. A Maison acredita que, ao promover práticas que respeitam o equilíbrio natural, as videiras conseguem se adaptar a ciclos climáticos mais imprevisíveis.

Ainda que algumas práticas estejam sendo implementadas para enfrentar o aquecimento global e seus desafios, as soluções são limitadas. O CIVC, em conjunto com os produtores, tem investido em estudos e pesquisas, inclusive de novas variedades de uvas, mais resistentes. Além disso, tem promovido uma viticultura sustentável, com a redução do uso de pesticidas e uma gestão mais eficiente dos recursos hídricos, incentivando a implementação de práticas sustentáveis, com metas ambiciosas de neutralidade de carbono até 2050.

Mas a questão que paira no ar é: até onde essas mudanças poderão ser mitigadas? Alguns especialistas enxergam com ceticismo a capacidade de adaptação a longo prazo. Peter Liem, um dos mais respeitados escritores sobre Champagne, entende que “enquanto alguns efeitos das mudanças climáticas, como a melhoria da maturação, podem parecer benéficos no curto prazo, a longo prazo, esses mesmos fatores podem ameaçar a identidade e a tipicidade que fazem de Champagne o que ele é.”

O fato é que a região de Champagne não pode contar indefinidamente com os efeitos positivos de um clima mais quente. O que está em jogo não é apenas a sustentabilidade do cultivo, mas também a alma de uma bebida que é o reflexo direto de seu terroir.

Maria Paula Almeida

Por: Maria Paula Almeida

Maria Paula Almeida é Champagne Master. Professora e Diretora da Sommelier School. Sommelière e especialista em vinhos.